Segunda-feira, 5 de Outubro de 2009

Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte I

 

 Estas notas, escritas de memória, são de um momento da minha vida no Quitexe (cerca de dois anos) muito marcante. Suscitadas pelas imagens e textos do blogue. Estive lá entre os 18 anos e os 21 anos. Uma fase fantástica da vida. Como tenho saudades daquele tempo!  Fui funcionário administrativo (inicialmente, Aspirante e depois escriturário) da Administração do Concelho do Dange, no Quitexe, de 1961 a 1963.  Altura em que, de acordo com as leis do recenseamento, fui cumprir o Serviço Militar no CICA – Grupo de Artilharia de Luanda.


 
Depois do Serviço militar de quarenta e dois meses (quase quatro anos), ainda voltei para o quadro administrativo. Mas só lá estive um mês. Eu já não era o mesmo. O Exército mudou-me radicalmente. Já não aceitava aquela pequenez de espírito e a injustiça que caracterizavam a maior parte do dia-a-dia do Quadro Administrativo. Nem aquela subordinação quase feudal aos chamados superiores.
 
Pedi a exoneração. Como não ma queriam dar, abandonei pura e simplesmente os Serviços.
Depois de um primeiro requerimento, perante a iminência de ser de novo enviado para o mato, como era costume designar-se o interior de Angola, e pelas razões acima apontadas, fiz um novo requerimento e pedi a exoneração a partir de um dia por mim próprio estipulado. Na ausência de qualquer deferimento, abandonei o lugar.
 
 
Mais tarde, já eu estava numa firma em Luanda (Armazéns Martero, Lda., na rua Pereira Forjaz, mesmo em frente à firma Mota & Cª.) a trabalhar e a ganhar o triplo do que ganhava no Quadro Administrativo, recebi então uma carta para ir À Direcção Provincial dos Serviços de Administração Civil fazer a rescisão amigável. Fui lá, assinei, eles assinaram e ficou o problema legalmente resolvido.
Ainda bem que tomei aquela resolução. Em 1969, vim a Portugal, que já não via há 13 anos, com a intenção de retornar. Fiquei aqui, empreguei-me, voltei aos estudos, tirei um curso universitário e fiz o percurso como professor. É a vida, cujos imprevistos acabam também muitas vezes por nos premiar.
 
 
Mas voltemos ao Quitexe:
 
Não cheguei a conhecer nem a trabalhar com o Administrador Matos. Apenas trabalhei primeiramente com o Administrador Rodrigo José Baião e depois com o Administrador Meneses e Pereira. Meneses e Pereira veio de Moçamedes – cidade onde se dizia existirem as moças mais lindas de Angola. De facto, as três filhas que ele tinha (também tinha um filho), salvo erro nascidas em Moçamedes, eram muito lindas.
 
O Administrador Rodrigo José Baião, antes de 15 de Março de 1961, era Chefe de Posto na localidade de "31 de Janeiro". Com o desfecho dos trágicos acontecimentos de 15 de Março, parece ter-se distinguido na defesa da área da sua jurisdição.
Vista aérea do Quitexe no dia 16 de Março de 1961
 
Rodrigo José Baião foi por isso louvado e promovido a Administrador da Administração do Concelho do Dange no Quitexe, entretanto criada e que abrangia: o Quitexe, o posto de Cambamba e os postos administrativos de Aldeia Viçosa e Vista Alegre, entretanto criados. Antes de 15 de Março de 1961, Aldeia Viçosa e Vista Alegre eram meras povoações comerciais.
 Timbre do Concelho do Dange ainda integrado no Distrito do Cuanza Norte
 
 
Cambamba, antes de 15 de Março de 1961, se me não engano, já era posto administrativo. Então chefiado pelo Chefe de Posto Arrobas Ferro, que, tendo-se, também, distinguido, foi promovido a Chefe da Repartição Distrital de Administração Civil do Quanza-Norte, Salazar (actual, Ndalatando).
Penso que Arrobas Ferro, quando Chefe de Posto de Cambamba, em 15 de Março de 1961 safou-se devido à fidelidade e coragem do cipaio Paulino, que, por isso, foi promovido a Cabo de Cipaios pelo, na altura, Governador Civil do Quanza Norte, Major Silva Sebastião. Hei-de voltar a falar do Paulino. Onde estará ele hoje?
 
O Posto Administrativo de Cambamba teve como primeiro Chefe de Posto, após 15 de Março de 1961, Largo Antunes, um Chefe de Posto, vindo do Sul de Angola. Salvo erro, Quibala.
 
O Posto Administrativo da Vista Alegre teve como primeiro Chefe de Posto Guedes Vaz.
 
E o Posto Administrativo de Aldeia Viçosa teve como primeiros funcionários, eu próprio (durante uns cinco ou seis meses), então Aspirante Interino do Quadro Administrativo, com 18 anos de idade, e o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França. Onde estará hoje o António Augusto Ribeiro França?
 
  Aldeia Viçosa - 1967
 
Na próxima mensagem explicarei como é que eu estive cinco ou seis meses em Aldeia Viçosa. Entre Setembro de 1961 e talvez Fevereiro de 1962.
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 10:37

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte II

 
Continuando a falar de Aldeia Viçosa, disse na minha última mensagem que o Posto Administrativo daquela área administrativa teve como primeiros funcionários, eu próprio (durante uns cinco ou seis meses), então Aspirante Interino do Quadro Administrativo com 18 anos de idade, o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França e o cipaio 1.º Cabo Paulino.
 
O Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França era um ex-seminarista, que, depois de ter servido como sargento do exército em Macau, entrou no quadro Administrativo de Angola. Escrevia muito bem. Fazia relatórios notáveis. E mais notáveis ainda quando já estava com uns uísques a mais.
 
Logo a seguir a 15 de Março de 1961, o Chefe de Posto França acompanhou a coluna militar que participou na chamada arrancada do Terreiro. Três dias e três noites sem dormir. Houve vários militares mortos. Eram árvores a ser derrubadas à frente e árvores a ser derrubadas atrás para encurralar a coluna. O cansaço era de tal ordem que, quando havia um ataque nocturno, os graduados tinha de andar a acordar os soldados que ficavam no meio do capim a dormir. Completamente esgotados.
 
O Paulino acompanhou sempre o Chefe França. Apesar de armado com uma velha Enfield 7.7 mm já sem estrias, o Paulino metia uma bala onde queria. Razão porque nunca tínhamos falta de carne de caça no posto. Era um belíssimo companheiro. Também andou muito comigo. Sobretudo quando íamos de Aldeia Viçosa à Pumbassai (via Entre Rios) buscar víveres. Recentemente, ouvi dizer que o Paulino posteriormente aderiu ao MPLA.
 
Eu conheci o Cabo Paulino e o Chefe António Augusto Ribeiro França em Salazar (actual Ndalatando). Em Setembro de 1961, tomei posse como Aspirante Interino do Quadro Administrativo na capital do Quanza Norte. O chefe França e o Paulino apareceram lá para receberem instruções do governador do distrito, Major Silva Sebastião, com vista à instalação do Posto Administrativo de Aldeia Viçosa.
 
Durante os dias que ali tivemos de convívio, talvez porque eu também era (e sou) um antigo seminarista estabeleceu-se uma certa empatia entre nós. De tal modo que, apesar de eu estar formalmente colocado na Administração do Concelho do Dange, no Quitexe, o Chefe França pediu ao Governador para me deixar ir com ele para Aldeia Viçosa. O governador autorizou e passados dois ou três dias fomos os três para Aldeia Viçosa. A protecção militar era, na altura, garantida por um pelotão (em regime de rotação) da Companhia de Caçadores 89, comandada pelo capitão Sampaio Nunes e sediada no Quitexe.
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 10:35

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1º Cabo Paulino

 
Há momentos em que nos sentimos gratificados pelo esforço e tempo perdido (ganho) para manter este blogue no ar, felizmente com o apoio de diversos amigos.
Ontem foi um desses momentos:
O amigo Arlindo de Sousa perguntava há dias nas suas crónicas:
 - Que será feito do 1º Cabo Paulino?
 
 Há 45 anos conviveu com ele no Posto Administrativo de Aldeia Viçosa e depois os seus caminhos descruzaram-se.
Não há dúvida que a net reduz as distâncias e globaliza as notícias e, foi assim que recebi um mail do Japão (!!!) do Dr. Germano Junta de Guilherme filho do Sr. Lacerda Paulino Bento (1º Cabo Paulino) dando-nos conta que o seu pai vive em Luanda e é uma óptima pessoa.
Fiquei sensibilizado por esta mensagem e queria enviar um forte abraço ao diplomata Dr. Junta de Guilherme, extensivo ao seu pai e desejar-lhe o maior sucesso na sua carreira.
 
João Garcia
publicado por Quimbanze às 10:34

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte III - Bar Morais

 
Bar Morais
 
Lembro-me do Sr. Morais (para os amigos apenas Morais). O estabelecimento dele em 1961-1963 ficava na esquina das ruas que conduziam: uma à estrada que levava a Aldeia Viçosa, Vista Alegre e Luanda; a outra conduzia à pista de aviação do Quitexe.
Quando eu lá estive, os vidros das montras, partidos na sequência dos acontecimentos de 15 de Março de 1961, ainda não tinham sido repostos.
 
A esplanada vendo-se os vidros ainda partidos
 
O Morais era gordo e gostava de fazer alarde da sua qualidade de comilão. Se calhar era só conversa para todos nos rirmos. Contava muitas histórias sobre as suas comezainas.
Uma que ele gostava muito contar era a dos 500 escudos. Vou tentar contá-la em poucas palavras. Quando ele veio da metrópole, desembarcou em Luanda e instalou-se numa pensão daquela cidade. Como comilão que dizia ser, muito honestamente avisou logo o dono da pensão que ele, Morais, gostava de comer bem.
A resposta do dono da pensão foi que não havia problema. Podia comer à vontade e não pagaria mais por isso. Feito o contrato, passaram-se dois, três, quatro dias, uma semana. O dono da pensão começou a constatar que o Morais comia de facto muito. E que assim não podia ser. Avisou o Morais de que, a comer assim, no fim do mês tinha que pagar mais que os outros comensais.
O dono da pensão e o seu comensal acordaram em novo preço e o Morais, claro, continuou a satisfazer o seu enorme apetite. Repetia vezes sem conta. De tal maneira que o dono da pensão, ao ver a vida a andar par trás, abordou de novo o Morais e disse-lhe: meu amigo, o senhor é uma pessoa simpática, mas come muito. Desculpe, mas tem de arranjar uma outra pensão. Olhe, não me paga nada e ainda lhe dou 500 escudos para se ir embora.
O Morais, Deus o tenha em paz (constou-me que já morreu), radiante, depois de ter comido quase um mês à borla e à tripa forra, pegou nos 500 escudos e mudou de pensão. É evidente que o fim da história era festejado com muitos comentários de grande vivacidade e estrondosas risadas.
O Morais, um verdadeiro ícone do Quitexe, era de uma enorme simpatia. Ao contar esta história, pretendo deste modo simples honrar-lhe a memória.
 
Arlindo de Sousa
 
 
 
Comentários
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De Jorge Santos a 8 de Agosto de 2008 às 18:17
 
 
Gostaria aqui de cumprimentar, e felicitar o Sr. Professor Arlindo de Sousa, pelos belissimos testemunhos que aqui nos faz chegar, sobre factos, pessoas e acontecimentos que a todos nós que temos um laço umbilical ligado ao Quitexe , nos delicia.
Esta estória " do amigo Morais que aqui nos conta, fez-me recordar juntamente com os meus Pais, momentos ilariantes que passàmos com este grande ser Humano, que foi o Sr. Morais. O meu Pai conhecia a estória " dos 500 Escudos... O amigo Morais para além de um grande amigo da familia , era visita frequente da Fazenda Guerra & Cia. Um dia, numa dessas visitas, o amigo Morais ainda não tinha jantado. A minha Mãe, modéstia à parte, sempre teve um bom dedo na cozinha, e naquele dia em casa havia uma sopa de feijão e outros ingredientes, à qual o amigo Morais não soube resistir. Foi o 1º prato de sopa cheio até transbordar, foi o 2º, foi o 3º até ao 8º prato. Foram 8 pratos de sopa que o amigo Morais virou de uma assentada. Como devem calcular, a panela ficou vazia... Foi uma risada geral para todos.
Não podia deixar de partilhar com voçês, tambem esta maravilhosa estória " do AMIGO MORAIS.
Um abraço ao Sr. Professor, e a todos os amigos do Quitexe .

 
 

 
 
De Arlindo de Sousa a 8 de Agosto de 2008 às 23:07
 
 
 
 
 
Amigo Jorge Santos,

Fico-lhe muito grato pelo seu comentário. É a confirmação de que as qualidades humanas do Sr. Morais eram realmente extraordinárias. Cativavam todos os que eram bafejados pela sorte de o conhecer. Entre muitas outras pessoas, estou convencido de que a maioria dos portugueses, que por razões históricas passaram pelo Quitexe, deve ainda recordar com o maior carinho e respeito a figura comunicativa e alegre do amigo Morais. Sempre irradiando humanidade e boa disposição.
Pela sua mensagem, deduzo, não sei se correctamente, que o amigo Jorge Santos pertence à Família Guerra. Quem não se lembra dos Guerras e do seu dinamismo e importância no desenvolvimento do Quitexe e das suas gentes. Já lá vão quase cinquenta anos, mas na minha mente ainda permanece bem viva a ideia de que eram pessoas de trabalho e de muita acção. Qualidades que naturalmente suscitavam a maior consideração de todos. Inclusive das autoridades administrativas da época.
 

Termino, fazendo votos para que este espaço, tão bem orientado pelo Sr. João Garcia, possa ser cada vez mais um sítio de encontro autenticamente fraterno. Sempre valorizando a imaterialidade que inequivocamente nos liga ao universo físico e humano do Quitexe. Assim, e no âmbito desta preocupação essencialmente humana, sugiro que ignoremos os títulos académicos ou outros e nos tratemos apenas pelo nome de baptismo.
Para o amigo Jorge Santos e para todos os outros amigos, um grande abraço de,
Arlindo de Sousa

 
 
 
De Jorge Santos a 9 de Agosto de 2008 às 00:48
 
 
Amigo Arlindo de Sousa.
Quero tambem agradecer a suas palavras, em resposta ao meu comentário.
Naquela terra, realmente antes dos titulos académicos, valorizavam-se as pessoas pelas suas qualidades humanas. O relacionamento entre as pessoas, era de uma correcção e lealdade sem limites, o que levava a que as classes sociais se diluissem num todo, e se vivesse em saudável convivência.
Amigo Arlindo, de facto não pertencemos à familia Guerra. O meu Pai era Encarregado geral da Fazenda Guerra & Cia.. O sr. Ramos era sim representante da familia Guerra, e Gerente geral da Firma.
O meu Pai tambem lá passou o trágico 15 de Março de 61. Estes HOMENS foram de uma coragem extraordinária, perante tanta tragédia a sua volta. Pelo que li nos seus comentários, o amigo Arlindo tambem atravessou esta fase de 61. Sabe bem o que por lá se passou...

Um abraço para si, e toda a malta do Quitexe...


publicado por Quimbanze às 10:27

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte IV - O Sr Guedes

 

Quando cheguei ao Quitexe (fins de 1961 início de 1962), conheci o Sr. Guedes (para os amigos simplesmente Guedes). O Guedes, na altura dos trágicos acontecimentos de 15 de Março de 1961, parece que se viu apertado. De tal maneira que fez uma promessa (já não sei a que santo) de andar um ano inteiro sem fazer a barba.
Com as enormes barbas, entretanto crescidas, o Guedes parecia um patriarca bíblico. Só as viria a cotar no dia 15 de Março de 1962. Quando as cortou, todos estranhámos o seu aspecto. Não parecia o mesmo. Afinal não é impunemente que se cortam umas barbas de respeito. Como eram as do Guedes.
O Guedes sabia trabalhar muito bem a madeira. Por isso, consciente da sua mestria, não gostava que lhe chamassem carpinteiro. Apenas marceneiro.
 
Como marceneiro, o Guedes trabalhou na oficina da Administração, pago com verbas do orçamento da Comissão Municipal do Quitexe. Como era um belíssimo conversador, a carpintaria, que funcionava num barracão junto ao edifício da Administração, era muito frequentada sobretudo pelos funcionários de que eu também fazia parte. Organizavam-se ali verdadeiras tertúlias que, na altura e face à situação do Quitexe, muito contribuíam para nos manter moralizados.
Recordo-me de uma obra-prima do Guedes. Fez uma verdadeira obra de arte em madeira embutida que representava as armas do batalhão que na altura ali se encontrava. Salvo erro era o Batalhão 317 (não sei se a identificação está cem por cento correcta).
 
Acontece que o Batalhão referido ia ser rendido e a peça artística era para, na hora da despedida, ser oferecida ao Comandante Militar pelo Administrador (já não sei exactamente qual). Cheguei a ver a obra-prima pronta. Hoje deve estar algures em Portugal a enfeitar uma prateleira de algum dos descendentes do então Comandante Militar do Quitexe.
 
 
 
Casa do Sr. Guedes - 2008
 
E o Guedes, onde estará hoje o amigo Guedes?
 
Arlindo de Sousa
 
publicado por Quimbanze às 10:13

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Quando uma carta é uma referência histórica - por Arlindo de Sousa

 
Sobre a História do Quitexe, partilho, agora, um apontamento que acho curioso e pode eventualmente funcionar como um pequeno contributo para a História desta vila angolana.
Por razões matrimoniais, tenho parentes em Armamar. Os meus familiares daquela localidade tiveram um primo (já falecido) que, depois de ter frequentado o curso de Direito na Universidade de Coimbra, emigrou para Angola, então colónia portuguesa.
Em Angola (década de 1920?), ingressou no Quadro Administrativo. Entre os sítios onde esteve colocado, conta-se o Quitexe. Lugar onde curiosamente eu também trabalhei como funcionário administrativo cerca de trinta anos depois.
No meio da papelada antiga da família, existe a seguinte carta enviada do Quitexe, datada de 18 de Maio de 1930.
 
"Quitexe – 18-5-1930
 
Caro Quim
 
Mais uma vez poz em evidencia a amizade que nos liga, da qual eu nunca duvidei.
Já deve saber por meu tio que fui colocado como Secretario de Circunscrição, logar este dos mais decentes de Angola e que dá para se viver decentemente.
Tem muitos espinhos, pois calcule que tenho de fazer de escrivão, oficial do registo civil, notario, chefe de posto e secretario da Comissão Municipal.
Para quem nunca lidou com processos, nem com toda esta trapalhada, vejo-me à vara, mas felizmente vou singrando.
Agradeço-lhe o ter lembrado o meu nome a esse cavalheiro que já cá está como Director das Alfandegas, pois é meu desejo conseguir ser nomeado para lá, porque é dos logares que aqui dão mais dinheiro.
Então por aí tudo ma mesma?
Faço votos para que seja feliz no exame.
Com respeito à sua vinda para aqui dou-lhe de conselho o seguinte, apezar da minha pouca pratica d'Africa. Se conseguir aí um logar fique por aí, pois Africa não é o que se julga; se por acaso, tiver de sahir de Portugal e queira vir para aqui pode vir sem receio, pois consegue aqui ganhar muito dinheiro.
No entanto aproveite o meu 1.º conselho.
Mais uma vez os meus agradecimentos, pela sua lembrança.
 
Um abraço do seu amigo certo sempre ao seu dispor.
 
Manuel Gomes dos Santos
 
Direcção   Circunscrição Civil do Encoje – Quitexe
Cuanza Norte."
    
A respeito da carta acima transcrita, mantive a grafia então em uso. O signatário era natural de Goujoim, onde segundo me informaram está sepultado. Foi dirigida a um antigo condiscípulo dos tempos de Coimbra chamado Joaquim Silveira, que, tendo concluído o Curso de Direito, fez carreira na magistratura.
Julgo que o conteúdo da carta em foco é interessante, pelos seguintes motivos:
 
1 – Dá-nos uma ideia bastante clara da consideração social de que gozava um Secretário de Circunscrição e da dimensão da auto-estima resultante do exercício do cargo.
 
2 – Um Secretário de Circunscrição desempenhava diversas funções e da carta transparece uma quase completa ausência de formação profissional, que eu próprio constatei cerca de três décadas mais tarde. Talvez com excepção dos funcionários administrativos formados pelo antigo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, na maioria esmagadora dos casos ia-se aprendendo com a prática.
 
3 – A chamada cunha era uma instituição e era através dela que muitas vezes se conseguiam os empregos susceptíveis de darem mais dinheiro. Como pelos vistos acontecia com os tão cobiçados cargos desempenhados nas Alfândegas.
 
4 – Se um sujeito tivesse habilitações de certo nível, e em Portugal andasse às aranhas, em África encontrava emprego garantido e bem remunerado.
 
5 – Sob o ponto de vista da História do Quitexe, se tivermos em conta que as primeiras casas de comerciantes europeus naquela vila só se consolidam na década de 1940, inferimos: que o sítio designado de Quitexe teria sido escolhido para a edificação da sede da Circunscrição do Encoge, antes de ali haver qualquer comerciante instalado, por se considerar que a localização geográfica reunia excelentes condições para ser um centro administrativo; e possuía igualmente excelentes condições para, no futuro, nele se fundar uma povoação, a qual, assim que começaram a surgir as primeiras casas comerciais, tomou logo o nome do sítio – Quitexe.
 
6 – Ainda no que concerne à História do Quitexe, baseando-nos no conteúdo da carta acima transcrita, deduzimos também que, em data imediatamente posterior a 1930 que não sabemos precisar, aquela área foi seguramente alvo de uma reorganização administrativa, em consequência da qual a povoação do Quitexe deixou de ser a sede da Circunscrição Civil do Encoge por aquela Circunscrição ter sido extinta.
 
7 – O Quitexe teria assim sido logicamente transformado em sede do posto administrativo do mesmo nome, sob a alçada do Concelho de Ambaca em Camabatela, distrito do Quanza Norte, baixando de categoria.
 
8 – Na sequência dos acontecimentos de 15 de Março de 1961, uma nova reorganização administrativa fez o Quitexe recuperar a antigo estatuto perdido (de cabeça de circunscrição), transformando-o em sede da Administração do Concelho do Dange, então criada. E sob a sua dependência, para além do posto – sede, ficaram os postos administrativos de Aldeia Viçosa e Vista Alegre, então também criados, e o Posto Administrativo de Cambama destacado do Concelho de Quibaxe.
 
9 – Pouco tempo depois (21 de Julho de 1962), verificou-se novo reajustamento administrativo, em resultado do qual o Concelho do Dange foi separado do Distrito do Quanza Norte, de cuja capital o Quitexe dista 300 Km, e passou a pertencer ao distrito do Uíge, cuja capital está apenas a 40 Km de distância.  
Houve cerimónia oficial no Quitexe. Para além de muitas outras pessoas, estiveram presentes os Governadores de ambos os distritos respectivamente Major Silva Sebastião e Major Rebocho Vaz, o Comandante Militar do Quitexe (não sei o nome) e o Dr. Pinto Assoreira. Tenho fotos. Na ocasião foram "Louvados por Sexa. Gov. Dist. Q. N." o Secretário da Administração do Quitexe Políbio Fernando Amaro Valente de Almeida e os Chefes de Posto António Augusto Ribeiro França (Aldeia Viçosa) e Guedes Vaz (Vista Alegre).  
 
 
 
Como se constata, a carta data de 18 de Maio de 1930 que o Secretário da Circunscrição do Encoge – Quitexe, Angola, Manuel Gomes dos Santos, enviou então ao seu antigo condiscípulo de Direito, Joaquim Silveira, magistrado colocado algures numa comarca do Norte de Portugal, contem preciosas informações, que bem podem representar um pequeno, todavia útil, contributo para a História do Quitexe.
 
Em jeito de conclusão, creio que podemos registar que o sítio do Encoge propriamente dito (uma espécie de Nambuangongo dos finais do século XIX e inícios do século XX), dado o seu valor estratégico, constituiu-se em centro do poder militar. Visto que quem o ocupasse militarmente dominava a região.
A partir do Encoge, primeiro teriam dominado os Dembos acaudilhados pelo dembo Quitexe. Derrotado o dembo Quitexe pelas armas lusas, a partir do Encoge passaram a dominar militarmente os portugueses.
A seguir à vitória militar, ter-se-ia imposto a necessidade de pacificar e organizar o poder civil, para cujo centro foi escolhido um sítio (com grandes possibilidades futuras) que, certamente em honra do valor guerreiro do chefe dembo vencido e avassalado, foi denominado de Quitexe. Passámos assim a ter a "Circunscrição Civil do Encoje – Quitexe (distrito do) Cuanza Norte".
Um pouco à semelhança do que a seguir a 1961 se passou com Nambuangongo, o interesse estratégico do Encoge não era apenas militar, era também espiritual, era o significado, porventura de invencibilidade, que lhe estava associado. A sua ocupação teria representado um ponto de viragem (sem retorno), a que se seguiu a organização do poder civil e talvez uma pacificação com aspectos a fazer lembrar a acção psicossocial que, depois de ultrapassados os momentos mais traumáticos depois de 1961, foi implementada com sucesso em todo o Norte de Angola.
 
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 09:59

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte VI

 
Em meados de Setembro de 1961, acompanhando o 1.º Cabo de Cipaios Paulino e o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França, fui para Aldeia Viçosa. Fizemos o percurso entre a actual Ndalatando e Aldeia Viçosa, sem qualquer protecção militar, passando por Lucala, Samba Caju, Camabatela, Companhia Agrícola do Pumbassai e Entre Rios (uma dependência da Pumbassai).
 
Antes de chegarmos ao destino, quando já circulávamos na estrada Quitexe – Aldeia Viçosa, o Chefe França, que conduzia o Jeep Willis em que nos transportávamos, foi-me mostrando os vestígios ainda muito visíveis dos dias mais difíceis que se seguiram ao fatídico dia 15 de Março de 1961: as valas abertas pelos revoltosos só tinham sido aterradas o suficiente para permitirem uma passagem apressada das viaturas; e as árvores derrubadas, ou os troncos em que devido ao seu gigantesco porte tinha sido necessário serrá-las, ladeavam nos pontos mais críticos a estrada.
 
 Esta foto apresenta o Jeep Willis que a Administração do Concelho do Dange herdou do antigo Posto Administrativo do Quitexe. Foi usado pelo seu último Chefe de Posto, Nascimento Rodrigues.
 
 
 
Chegados a Aldeia Viçosa, sem qualquer problema, verifiquei que a povoação estava ocupada por um pelotão da Companhia de Caçadores 89 e havia uma meia dúzia de civis. Mas as casas (o aglomerado não tinha mais que umas sete ou oito habitações) encontravam-se completamente destruídas. Segundo então me foi informado, numa fase inicial os revoltosos não destruíram nada. Estavam convencidos de que os proprietários não voltavam mais e que, portanto, poderiam dividi-las entre si, assim como os respectivos pertences.
 
A completa destruição só teria acontecido quando os sublevados, face à reacção militar e ao elevado ânimo de muitos dos proprietários, verificaram que afinal a partida não estava ganha. A aviação, por sua vez, ao sobrevoar o local, pensando que havia gente nativa dentro do que restava das casas, completou o quadro de total devastação.
 
A destruição era de tal ordem, que eu e o Chefe de Posto instalámo-nos num espaço que não era mais do que um sítio, circunscrito pelas paredes de uma antiga casa de banho, tosca e provisoriamente coberto com chapas de zinco. Situação idêntica era a dos poucos civis e dos militares que ali encontrámos. Como equipamento, para além das armas, dos víveres e de algum material de expediente, tínhamos uma máquina de escrever e um transreceptor P19 do tempo da 2.ª Guerra Mundial.
 
As sequelas das chacinas e das destruições verificadas em 15 de Março de 1961, e nas semanas que se seguiram, estavam ainda bem vivas em toda a parte. Mas, apesar disso e na generalidade, toda a gente trabalhava corajosa e abnegadamente para que a vida na região retomasse a normalidade.
 
Tudo era feito para se conseguir recriar um clima de paz e trabalho que beneficiasse toda a população, independentemente da sua cor, credo ou função social: junto de Aldeia Viçosa, as fazendas Alice e Cassequel já estavam a ser de novo agricultadas e ocupadas por trabalhadores bailundos; em relação a outras fazendas, vislumbravam-se já projectos de reocupação; e Aldeia Viçosa, embora ainda cambaleante e com grandes dificuldades, começava a recuperar do vendaval destruidor que quase a aniquilou totalmente.
 
Nós próprios, os representantes da autoridade administrativa, dávamos o exemplo: recolhíamos chapas de zinco abandonadas, tapávamos os furos com um ferro de soldar e aproveitávamo-las para melhorar as instalações. Todos trabalhavam para que a vida retomasse o curso normal. Começando por privilegiar o sector económico. Alimentávamos a ideia de que com a riqueza, viria a segurança e uma nova fase de progresso para todos.
 
O esforço de recuperação foi obra de todos: trabalhadores, proprietários, militares e funcionários administrativos. Mas em todas as situações aparece sempre uma ovelha ranhosa. Certo dia encontrei um tambor de petróleo de 200 litros, provavelmente escondido pelos sublevados nos momentos mais difíceis. Fi-lo transportar para a povoação com a finalidade de ficar à disposição de toda a gente. Pois, sem que inicialmente me tivesse apercebido, houve um sujeito que disfarçada e abusivamente se apossou dele.
O atrevimento saltou à luz, quando alguns militares, precisando de petróleo para limpar as armas, se lhe dirigiram para o obter. O dito cavalheiro teve a desfaçatez de cobrar dinheiro aos militares pelo petróleo cedido. Militares que ali estavam a arriscar heroicamente a vida por uma causa genericamente tida por justa.
 
Assim que soube do sucedido, alertado pelos militares lesados, não estive com meias medidas. Levei-os de imediato à presença do pouco escrupuloso sujeito e obriguei-o a devolver-lhes as importâncias indevidamente cobradas. Será que algum dos ex-militares da Companhia de Caçadores 89, protagonistas deste episódio, ainda se lembra do caso? Afinal, tal como sucede com um oceano composto por um número incalculável de gotas de água, a história também se constrói com estes pequenos nadas.
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 09:56

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte VII

 
Poucos dias depois de ter chegado a Aldeia Viçosa, o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França disse-me que um funcionário administrativo, para bem desempenhar a sua função, tinha de conhecer fisicamente a respectiva área de exercício. Mas, como na altura, por falta de segurança, não era possível percorrer os diversos itinerários sem protecção militar, recomendou-me que aproveitasse as oportunidades em que a tropa instalada em Aldeia Viçosa se deslocava em patrulhamento.
 
A primeira e julgo que única deslocação, com a finalidade referida, fi-la à Fazenda Luís Pereira. Eu viajava ao lado do condutor de um Jeep particular, equipado com uma blindagem artesanal apenas segura contra canhangulos, caçadeiras e armas de pequeno calibre. Uma bala de Mauser 7,9 mm por exemplo, disparada a uma distância conveniente, acho que furava aquilo tudo. Porém, como geralmente os grupos sublevados disparavam de longe, sempre era melhor que nada.
 
A minha arma era uma pistola-metralhadora FBP de 9 mm e à cinta, numa espécie de coldre, usava uma Walter de 7,65 mm. Aquelas armas para mim eram quase inúteis. Com 18 anos de idade, não possuía qualquer treino militar. No Posto, o Chefe França tinha-me apenas explicado sumariamente o funcionamento.
O único conhecimento que eu tinha de armas baseava-se numa pistola Star 6,35 mm que eu possuía clandestinamente quando vivia em Luanda. E o treino de fogo tinha-se cingido a um disparo experimental feito no quarto onde dormia na Vila Clotile e que teve como consequência furar uma mala e quase inutilizar algumas peças de roupa e umas fotografias que tinha lá dentro. Ainda hoje possuo uma das fotos afectadas.
 
A coluna militar, cujo efectivo não ultrapassava o de uma secção, se não me engano, era constituída apenas por uma jipão atrás e por um Jeep à frente. A minha viatura viajava no meio.
Desminagem numa picada do Quitexe
 
O armamento era constituído por espingardas Mauser 7,9 mm, uma bazuca, talvez um morteiro, já não me lembro bem, uma metralhadora Dreiser e uma metralhadora Breda montada no Jeep da frente em que viajava o comandante da coluna. Na circunstância um alferes, cujo nome já não recordo com precisão. Parece-me que era o alferes Reynolds, mas sinceramente não tenho a certeza (podia ter sido outro). E claro as habituais granadas de mão.
 
Em determinado ponto do trajecto, o alferes abrandou e indicou-me com a mão um sítio sobranceiro de mato cerrado de onde dias antes tinham sido atacados. Já não muito longe da Fazenda Luís Pereira (não sei precisar a distância), há uma subida e do lado direito existia uma mata muito fechada. Os motores das viaturas da coluna roncavam sob um sol escaldante deixando um rasto de poeira. Daquele pó fino que se entranha por todo o corpo misturando-se com o suor.
 
Inesperadamente, soou da mata fechada, acima referida, uma vasta fuzilaria. A tropa reagiu de imediato. Os soldados saltaram fazendo um fogo nutrido e, enquanto alguns militares ficavam de guarda às viaturas, outros meteram-se resolutamente pelo mato dentro disparando sem cessar. Com o objectivo de, se possível, apanhar os guerrilheiros. Estes num ápice deram às de vila Diogo. Era mais um ataque do género "flagela e foge". Mas o local entretanto tinha-se tornado num verdadeiro Inferno: o fogo desencadeado pelas granadas incendiárias ultrapassava o cimo do arvoredo.
 
Eu, como resposta imediata aos disparos dos guerrilheiros, ainda fiz uns tiros com a FBP na direcção da mata. A partir da janelinha da blindagem da viatura blindada que me transportava. Mas a minha pistola-metralhadora deixou logo de funcionar. Vim depois a saber que, com alguma frequência e naquele tipo de arma, o gás resultante da explosão do invólucro não conseguia fazer recuar suficientemente a culatra. Pelo que, em tais circunstâncias, só era possível rearmar a culatra fazendo o recuo manualmente. Enfim, não estava minimamente preparado para aquele género de situações.
 
Terminada a emboscada, e feito um breve balanço, verificou-se que nenhum dos elementos da coluna tinha sido afectado. Descobriu-se no entanto que o jipão foi atingido por uma bala que, depois de ter furado a chapa, ainda atravessou uma manta dobrada em que um soldado ia sentado. Conclusão: só por mera sorte, não tivemos ali um grande problema. Mas, como é costume dizer-se, tudo corre bem quando acaba bem. Foi o caso. Do lado dos guerrilheiros, não sei o que se teria passado. Contudo é bem provável que todos tivessem escapado sãos e salvos. Se assim foi, ainda bem. Ficámos todos a ganhar!
 
Retomando a marcha, passado muito pouco tempo chegámos à Fazenda Luís Pereira. A devastação ali era, como em Aldeia Viçosa, também total. Parecia que uma serra gigantesca tinha cortado as paredes das instalações pela raiz. Tudo rebentado, demolido e enegrecido, ferros retorcidos e tubos do que tinha sido a canalização de água incrivelmente espatifados. Pelo grau de destruição observado, é bem provável que também ali a aviação tenha molhado a sopa. Como em Aldeia Viçosa.
 
Regressados ao aquartelamento, felizmente sem quaisquer outros inconvenientes, relatei em carta, enviada seis dias mais tarde para a terra, a experiência do primeiro ataque por mim vivido. Do seguinte modo:
 
Aldeia Viçosa, 18 de Setembro de 1961.
 
No passado dia 12, às nove e meia da manhã, na estrada que liga Aldeia Viçosa à Fazenda Luís Pereira e quando sob escolta de uma secção de tropa da Companhia de Caçadores 89, foi o meu baptismo de fogo. Os atacantes utilizaram o método da emboscada traiçoeira. Os nossos militares reagiram com grande coragem e determinação, pondo os inimigos em fuga.
 
 
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 09:46

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte VIII

 
         
Alguns dos angolanos que a partir de 1961 passaram a lutar de armas na mão pela realização imediata do seu ideal independentista acreditavam cegamente na justiça da sua causa, que defendia uma Angola apenas para as pessoas de raça negra. Nem os mestiços eram aceites.
 
 
 
 
 
 
Do lado dos portugueses, havia também gente que acreditava não menos cegamente na possibilidade real de uma pátria multirracial politicamente una e indivisível, apesar de pelo mundo geograficamente dispersa.
 
               Como alternativa às duas opções acima referidas, ambas condenadas pela história e pela consciência civilizacional sempre em evolução, também havia um vasto universo de pessoas, agrupando gente de todas as raças e tonalidades de pele que ansiava por uma Angola independente onde todos os que nela se encontravam teriam lugar.
 
          Este ideal – o único com futuro – foi-se enraizando profundamente na alma da maioria esmagadora das pessoas que viviam em Angola. A sua concretização seria apenas uma questão de tempo. O ideal colectivo estava maduro. Faltava apenas aquilo que em História se designa de motivo para se realizar. E que surgiria não pela luta armada mas pela revolução mental.
 
      É por esta razão que no caso de Angola, o desfecho acabou por não ser propriamente militar. Antes foi representado por uma grande e esperançosa festa, generosamente desencadeada pelo Movimento dos Capitães em Portugal.
 
       A quem duvidar da minha convicção nesta matéria, apenas direi que em 1975, num comício de apoio ao MPLA realizado no anfiteatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (em que por acaso estive presente), o Almirante Rosa Coutinho, falando aos presentes, afirmou que em Angola, no dia 25 de Abril de 1974, a FNLA (antiga UPA) estava praticamente extinta, a UNITA colaborava com o Exército Português e o MPLA, o partido então mais credível e de todo anti-racista, passo a citar, "estava de tanga". Creio que o conceito de "tanga", no contexto em foco, se referiria à componente militar e não propriamente à credibilidade da filosofia do MPLA. Intelectualmente sólida e em expansão em todas as vertentes do pensamento.
 
       Em relação ao desfecho esperançoso e festivo do legítimo e profundo anseio de independência de Angola, representado pelo salto qualitativo que em termos de dinamismo lhe imprimiu a Revolução dos Cravos em Portugal, julgo que podemos dizer que, historicamente, no foro da consciência – o único espaço onde acontecem as verdadeiras mudanças de mentalidade (afinal as autêntica revoluções) – estamos em presença de uma vitória comum a angolanos e portugueses. Como poderíamos de outro modo justificar a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal? Pessoalmente, acho que esta data devia ser festejada como o dia da liberdade de e por todos os povos de língua portuguesa.
 
      Em 25 de Abril de 1974, não é demais repetir, a chamada luta armada em Angola quase já não existia. E a independência aconteceu não pela força das armas mas pela força da evolução da consciência civilizacional de Angola, de Portugal e do Mundo.
 
    O que em meu entender inquinou a alma angolana, por natureza entre muitas outras qualidades pacífica e tolerante, foi a guerra civil angolana que se desencadeou a seguir à independência política. Todavia, a paz regressou e Angola está em pujante progresso. Tenho esperança na capacidade realizadora dos angolanos. O presente de Angola já é admirável. A grandeza do seu futuro, entre muitos outros agentes, será directamente proporcional à capacidade que os angolanos tiverem de se abrir aos países de expressão oficial portuguesa em particular e ao Mundo em geral.
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 09:43

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte IX

 
    Já disse anteriormente que em Aldeia Viçosa tudo estava a ser feito, na medida do possível, para recriar um clima de normalidade. Mas havia o dilema constante de termos de enfrentar diariamente inúmeras dificuldades. Uma delas, e seguramente a mais preocupante, residia no facto das populações autóctones estarem todas fugidas nas matas. Não se via ninguém. Perscrutava-se o horizonte e nada. Parecia que estávamos num planeta desabitado.
 
    Os sinais de vida, que por desdita de todos acabavam por reforçar o ambiente de morte, só se manifestavam quando surgiam as emboscadas. Nesses momentos, o atroz silêncio, em que o chamado sexto sentido nos dizia existirem guerrilheiros à espreita, transformava-se inopinadamente em Inferno. Passado o ataque, desde que não houvesse feridos ou mortos a lamentar, tudo voltava novamente a um quietude de cortar à faca. Apenas se fazia ouvir a monotonia do ruído dos motores das viaturas. E também o ranger das molas, com a resistência constantemente colocada à prova pelo piso irregular das estradas.
 
    A excepção à realidade descrita, ainda que inicialmente muito ténue, era constituída pelos bailundos que esforçada e dedicadamente contribuíam, com o seu trabalho e lealdade, para a realização do que veio a ser designado por milagre da recuperação económica. Para o referido milagre, verificado entre 1961 e 1975 data da Independência de Angola, também contribuíram depois as populações autóctones à medida que foram regressando das matas.
 
    Os bailundos cooperaram também com o seu heroísmo. Sozinhos nas fazendas, não foram  poucas as vezes que resistiram heroicamente a grupos então adversos. Frequentemente com o sacrifício da própria vida.
 
     Na Fazenda Vila Alice, mesmo em frente a Aldeia Viçosa, presenciei um sarilho nocturno, que foi resolvido pela capacidade de resistência dos trabalhadores bailundos, apoiados por um destemido grupo de militares do pelotão Companhia de Caçadores 89 que guarnecia Aldeia Viçosa. Era de noite. Acompanhei os militares e mais uma vez se manifestou a minha inexperiência. Chegados ao local, ao levantar-me para sair da viatura fiz um disparo acidental de que felizmente apenas resultou um furo na chapa, indo a bala da minha pistola-metralhadora FBP desaparecer no chão. Às vezes, a sorte protege-nos.
 
     Quem lidou com aquela arma, sabe muito bem que era muito falsa. Mas esta razão não é suficiente para que não confesse mais uma vez a minha total inexperiência na respectiva utilização. E o desconhecimento, em matéria de armamento, às vezes pode causar prejuízos irreparáveis. Ao próprio e a terceiros.
 
     Passados dias também se registou um problema na Fazenda Cassequel em que, entre outras atitudes hostis, elementos adversos dispararam tiros de canhangulo. Socorridos, os trabalhadores aguentaram-se com sucesso. No dia seguinte, ainda o amanhecer vinha longe, a tropa, que acompanhei pessoalmente, fez o reconhecimento das imediações da fazenda. Entre outros vestígios, encontrámos palhotas acabadas de abandonar ainda com o lume aceso. O objectivo era melhorar o clima de segurança no local. De todo indispensável à normalização da laboração daquela unidade agrícola.
 
     Em Aldeia Viçosa, por vezes também acontecia haver de noite situações de alarme, que depois se verificava serem infundadas. Não admira. A latente tenção nervosa, devida à frequente vivência de momentos de grande perigosidade e agravada pelo silêncio da noite, podia explodir face a um inesperado ruído provocado por um qualquer animal selvagem, possivelmente atraído pelo cheiro lançado no ar pelos restos de comida. Mesmo que fossem insignificantes.
 
Lembro-me de uma vez em que, face ao tiroteio verificado e cujo ruído de noite parece ter realmente uma maior dimensão, toda a gente se levantou e, com armas e munições, correu estremunhada para as posições de defesa. Em situações do género, até se vêm e sentem coisas inexistentes que a nossa imaginação, em estado de grande excitação, nos apresenta como reais.
 
     De outra vez, integrado numa coluna militar com certa extensão e que hoje já não consigo identificar, na estrada que leva ao Quitexe mas ainda bastante perto de Aldeia Viçosa, numa curva bastante pronunciada em local de densa vegetação, um soldado que viajava na viatura da frente também disparou inadvertidamente a arma. Tal disparo foi o suficiente para que toda a gente aos tiros saltasse das viaturas. Enquanto alguns militares, abrigados nas valetas guardavam os veículos, outros lançaram-se pelo mato no encalço de possíveis guerrilheiros.
 
     Com toda aquela confusão, os militares da frente já disparavam forte e feio contra os da retaguarda e vice-versa. Até que alguém responsável descobriu o logro e mandou parar o fogo. Felizmente ninguém se feriu. Mas poder-se-iam ter registado consequências muito graves.
Recordo-me que, com a pressa de me abrigar também na valeta, coloquei a alavanca de velocidades em ponto morto e imobilizei o Jeep com o travão de pé, mas com a atrapalhação esqueci-me de acto contínuo accionar o travão de mão. Quando, já estendido na valeta, verifiquei de relance que o Jeep, dado que a estrada naquele sítio era descer, já estava a deslizar e a ganhar embalagem com o risco de se despistar, levantei-me de imediato e, correndo, consegui alcançá-lo e imobilizá-lo efectivamente. Enfim, coisas da breca.
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Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 09:25

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte X

 
     Cerca de uns dois meses depois de chegar a Aldeia Viçosa, recebemos no posto uma mensagem pelo transreceptor P19 convocando-me para me apresentar com urgência na capital do distrito. O texto muito sintético, como era próprio daquele tipo de mensagens, era pouco esclarecedor e eu verdadeiramente fiquei sem saber o motivo da convocatória.
 Interior da Administração, sala do transreceptor P19 (são visíveis os sacos de areia a defender a janela)
 
 
     Dado que não havia quaisquer outras possibilidades de transporte, o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França colocou o Jeep do posto, devidamente abastecido de gasolina, à minha disposição e foi nele que, sozinho, fiz o percurso de cerca de 300 Km que separa Aldeia Viçosa da então cidade de Salazar (actual Ndalatando), via Entre Rios (uma dependência da Fazenda Pumbassai), Companhia Agrícola do Pumbassai, Camabatela, Samba Caju, e Lucala.
 
     Chegado a Ndalatando, fiquei a saber, concretamente, do que se tratava. Quando ainda estava em Luanda, concorri simultaneamente para o Quadro Administrativo e para a Força Aérea. Já estava eu no Quadro Administrativo, a Força Aérea convocava-me para efeitos de inspecção a realizar em Luanda. Instado a optar, abandonei a ideia da Força Aérea e declarei pretender ficar no Quadro Administrativo.
 
     Depois de, a seu desejo, ter ido à presença do Governador, Major Silva Sebastião, dar algumas informações sobre a situação na área do nosso posto administrativo, voltei com o Jeep para Aldeia Viçosa. Durante o percurso, na zona de Samba Caju fui apanhado por uma monumental trovoada acompanhada de chuva intensíssima. Parecia que o diabo tinha saído do Inferno.
 
     De tal modo que, dois ou três quilómetros a seguir àquela localidade, encontrei um camião parado e um tractor virado. Pensei logo no pior. Contudo, como vi o motorista do camião, parei e o que se estava a passar era que uma faísca acabava de matar o condutor do tractor. Resultado: Voltei a Samba Caju para avisar as autoridades locais, que me acompanharam até ao sítio do acidente, e fiz-me de novo à estrada.
 
      Entre Camabatela e a Pumbassai, cruzei-me com um Jeep, o que dada a perigosidade da zona era um acontecimento. Instintivamente ambos parámos com enorme espanto e dirigimo-nos um ao outro. Depois dos esclarecimentos recíprocos, fiquei a saber que o homem que estava à minha frente era o Chefe do então ainda Posto Administrativo do Quitexe, Nascimento Rodrigues. Conheci-o naquele momento e nunca mais o voltei a ver. Se ele ainda for vivo, poderá confirmar este meu registo.
     A impressão que naquele momento gravei na minha memória foi que estava na presença de um homem que, em consequência de meses antes ter vivido os massacres da área do Quitexe, estava muito destroçado. Mantendo contudo uma atitude de grande dignidade.
 
     Durante as breves explicações trocadas, o Chefe de Posto Nascimento Rodrigues quase que me chamou de inconsciente por eu estar a viajar sozinho para Aldeia Viçosa. Disse-me que fazer o trajecto sem protecção era arriscar demasiado. Um perigo próximo de um suicídio. Nascimento Rodrigues tinha plena razão. Naquele momento eu vivia realmente a inconsciência dos meus 18 anos de idade. Despedimo-nos. Como disse acima, nunca mais o vi. Felizmente, acompanhado da minha boa estrela, consegui regressar sem problemas a Aldeia Viçosa.
 
 
Esta foto exibe o Nissan Patrol que a Administração adquiriu novo. Era uma belíssima viatura. Que na fotografia eu estou a estacionar em frente da então Residência do Administrador.
 
     Encontrando-me outra vez mergulhado na lufa-lufa diária de Aldeia Viçosa, rapidamente esqueci os ponderados avisos do homem que no trágico dia 15 de Março de 1961 chefiava o Posto Administrativo do Quitexe, então pertencente concelho de Ambaca em Camabatela, distrito do Quanza Norte. Durante o pouco tempo que ainda permaneci em Aldeia Viçosa, foram várias as vezes (semanalmente) em que, acompanhado pelo Paulino ou por outro cipaio entretanto recrutado, fui buscar víveres à Fazenda Pumbassai.
 
     Costumava levar o Jeep e um atrelado emprestado pela tropa. No regresso, com o atrelado carregado, e às vezes ainda com alguns bailundos empoleirados em cima da carga, as subidas eram feitas a passo de caracol. Quando tínhamos a pouca sorte de chover, com o piso da estrada transformado numa camada de lama escorregadia como manteiga, a viagem era uma odisseia.
 
Lembro-me de uma vez em que, num dia em que o estado do tempo se apresentava normal, num troço do itinerário ladeado de capim, atravessaram a estrada à nossa frente vários veados. O pessoal quis logo parar para dar lhes dar caça. Fiz-lhes a vontade. Descemos todos e andámos por ali um bocado aos tiros. Não matámos nada. Para o futuro ficou apenas a memória da minha, então, mais que provada inconsciência. Apenas os 18 anos de idade podem justificar tamanha falta de calo e imponderação.
 
Arlindo de Sousa

 

publicado por Quimbanze às 09:20

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte XI - NATAL 61

 

     Passei a noite de consoada e o dia de Natal de 1961 em Aldeia Viçosa. Foi uma estopada. A ideia mais enraizada que me ficou foi a de ver o pessoal, particularmente triste por se encontrar longe da terra e da família. Viver a quadra natalícia, em que desde há cerca de dois mil anos, se apregoa "Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade e Glória a Deus nas Alturas", em guerra é de todo deprimente.  
 
     Não me recordo de que durante aqueles dias se tenham verificado actos hostis na área do nosso posto administrativo. Creio que os guerrilheiros, seres humanos como nós, provavelmente pensaram que a santidade daqueles dias não devia ser profanada com actos bélicos.
 
Na altura ouvia-se muito a rádio. A ideologia oficial era constantemente repetida. A canção "Angola é Nossa" era passada a todo o momento e o mesmo acontecia com as interpretações do género daquela em que o Fernando Farinha cantava o incansável e corajoso soldado português com as "fardas em farrapos".
 
     A Emissora Nacional também era muito ouvida. Não escondo que no meu imberbe espírito calava fundo a voz do locutor quando dizia: "Aqui Lisboa, Serviço Ultramarino da Emissora Nacional". Para mim, na altura completamente cego em matéria política como em quase todos os outros assuntos do mundo do conhecimento, era a prova de que não estávamos sós.
 
     Lembro-me também dos programas de um tal Ferreira da Costa. Para os incautos como eu, o homem era convincente. Parece que as suas crónicas até fizeram com que muitos portugueses metropolitanos tivessem tomado a resolução de emigrar para Angola. Gente que começou a ser designada pelos discordantes do regime mais críticos de "Tropa do Ferreira da Costa".
     Em relação à Emissora Nacional havia igualmente aquele programa intitulado "Rádio Moscovo não fala verdade". Enfim, sem que então eu de tal tivesse consciência, era a guerra da propaganda. Que, acabava por produzir um efeito importante nos ouvintes. Abrindo os olhos a uns. Aumentando a cegueira de outros. Como era o meu caso.
 
     A Rádio Brazaville também era muito ouvida. O discurso repetido dos meios de comunicação portugueses começava a levantar suspeitas de que, do apregoado à realidade, havia um fosso enorme. Daí o ter começado a impor-se como princípio generalizadamente aceite a ideia de que, se quiséssemos saber o que realmente se passava nas colónias portuguesas, o melhor era recorrer às emissoras estrangeiras então captadas em Angola.
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 08:56

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte XII - O Concelho do Dange

 
O Concelho do Dange criado na sequência dos acontecimentos de 15 de Março de 1961 formou-se: com o Posto Administrativo do Quitexe (anteriormente pertencente ao Concelho de Ambaca – Camabatela) que passou a ser o posto – sede; com o Posto Administrativo de Cambamba (salvo erro separado do Concelho dos Dembos em Quibaxe); e com os postos administrativos de Vista Alegre e Aldeia Viçosa (antes de 15 de Março de 1961 simples povoações comerciais).
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Já disse em outro momento das minhas memórias do Quitexe, que eu estava em Aldeia Viçosa por autorização particular do Governador do Distrito do Quanza Norte, Major Silva Sebastião. Formalmente o meu lugar era no Quitexe. Como entretanto o verdadeiro titular do lugar de Aldeia Viçosa se apresentou, despedi-me do António Augusto Ribeiro França e, creio que em Janeiro ou Fevereiro de 1962, fui para o Quitexe.
No Quitexe, estavam já, se não me engano, o Administrador Rodrigo José Baião, o Secretário Políbio Fernando Amaro Valente de Almeida, o Chefe de Posto Largo Antunes (que se encontrava ali à espera de que fossem criadas as indispensáveis condições para ir para Cambamba) e dois ou três aspirantes interinos (como era o meu caso). Pago com verbas da Comissão Municipal do Quitexe, de que era oficialmente funcionário, estava o Varela, um cabo-verdiano aparentemente sem grandes ambições materiais, todavia um bom profissional e excelente pessoa. Onde estará hoje o amigo Varela, que todos nós tanto estimávamos?  
Na altura, em relação à Administração, a preocupação máxima era pô-la a funcionar em pleno, uma vez que, como já disse anteriormente, o Quitexe antes era um mero posto administrativo e, naquela qualidade, teve como último Chefe de Posto, Nascimento Rodrigues, que, como disse num outro momento, eu conheci em plena estrada Camabatela – Quitexe.
O edifício, que antes tinha albergado o extinto posto administrativo e daí em diante ia acolher a Administração, estava ainda fortificado com sacos de areia, inclusive nas janelas, e alguma tropa pernoitava no interior. Procedeu-se pois à sua completa organização tendo em vista a normalização crescente da vida da vila e da área envolvente.
Durante a operação geral de limpeza, organização e arrumação, certo dia, de uma das velhas pastas saltou um dedo já ressequido. E no balcão de madeira, de atendimento, viam-se bem nítidas as marcas de algumas das catanas que em 15 de Março de 1961 chacinaram muitos dos habitantes do Quitexe. Inclusive, mulheres e crianças. Tal não foi a violência do massacre daquele fatídico dia!
 
Funcionário da Administração morto no dia 15 de Março de 1961
 
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 08:54

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Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte XIII

 

Apesar do turbilhão de violência e revolta independentista que assolava o Norte de Angola, havia quem na região do Quitexe insistisse em continuar a praticar, como anteriormente, injustiças. Quando tal acontecia, os militares estavam sempre disponíveis para apoiar a acção administrativa. Chegou mesmo a suceder serem os próprios militares a darem conhecimento de alguns desmandos à Administração. As autoridades militares e civis interessavam-se verdadeiramente em promover o bem-estar das populações. 

Administração do Quitexe

 

Contudo, havia problemas estruturais de difícil resolução, como era o caso dos milhares de bailundos engajados no Sul para trabalharem sob contrato nas fazendas de café do Norte de Angola. Quando se procedia ao seu repatriamento, depois de terem cumprido os contratos, o que é que se verificava pelas folhas de salários? Dois ou três capatazes recebiam, em remuneração pecuniária, tanto como 30 a 40 trabalhadores negros.

Esta situação de flagrante injustiça social, diariamente constatada, fazia com que os próprios funcionários administrativos, sem nada poderem fazer e agitando nervosamente as folhas de salários, se questionassem entre si em surdina: Vejam, vejam isto! Será que, a continuarmos assim, poderemos algum dia ganhar esta guerra? E havia mesmo quem, aproveitando o curto clima emocional de revolta assim criado, respondesse de imediato no mesmo tom e fugidiamente: Se eu estivesse no lugar deles, era terrorista de certeza absoluta. Aqui a palavra terrorista era apenas utilizada no sentido de guerrilheiro!

De vez em quando, e quando menos se esperava, propagava-se, com a velocidade de uma tempestuosa onda, enorme confusão de espanto, medo, impotência, perplexidade: alguns civis ou mesmo uma força militar em missão de patrulha haviam sido apanhados numa emboscada, tendo sofrido, mortos e feridos.

Nessas alturas, procedia-se, com a maior rapidez possível, à evacuação dos feridos graves, mobilizando-se os adequados meios aéreos. Quanto aos mortos, no dia seguinte, havia mais um cortejo fúnebre em direcção ao cemitério.

Gravados indelevelmente no meu espírito, entre muitas outras tristes, dolorosas e inesquecíveis recordações, ficaram a ecoar para sempre: os passos pesados e arrastados das botas dos que transportavam as urnas cobertas com a bandeira nacional; os vigorosos, mas magoados, discursos proferidos em tão fúnebres momentos; e as salvas estrondeantes em honra dos muitos militares portugueses que assim desceram às sepulturas. Tratava-se na maior parte dos casos de jovens que ainda no dia anterior gracejavam, riam, sonhavam...!

 

 Cartaz fazendo a apologia do exército

 

Enquanto tudo isto ia acontecendo: em Setembro de 1961, Salazar tinha entretanto acabado com o Estatuto do Indigenato na Guiné, Angola e Moçambique e elevava à categoria de cidadãos portugueses todos os habitantes daqueles territórios (1); em Dezembro de 1961, Goa, Damão e Dio caíam nas mãos da União Indiana; e ao longo de todo o ano de 1962 foram reprimidos com particular brutalidade todos aqueles que na Metrópole se vinham opondo ao regime ditatorial e insurgindo contra a guerra colonial, sendo de salientar, neste processo de contestação, as movimentações dos estudantes universitários constituídas por inúmeras acções de desobediência, greves e manifestações.

No interior da Administração

 

Eu, por meu turno, com base na experiência colhida no terreno e no clima social que o envolvia, comunicava para os meus pais:

  

 

Quitexe, 11 de Maio de 1962.

 

 

Com respeito à vossa possível vinda para Angola (2), os senhores melhor sabem o que fazer do que eu. Devo no entanto dizer-lhes o seguinte:

Angola é sem dúvida uma grande terra e com largos recursos... Tem terrenos onde se pode cultivar uma grande variedade de produtos e o seu subsolo é riquíssimo... Angola tem condições para ser uma terra de enorme progresso. Mas há a questão do terrorismo...

O terrorismo, aqui, por enquanto, é praticado com pequenos tiroteios..., tiros isolados, após os quais, os atacantes fogem sem deixarem rasto... Possuem pouco material. Algumas das armas, que têm, são as que roubaram aquando da eclosão dos acontecimentos de 15 de Março de 1961.

Os países vizinhos de Angola, principalmente a República do Congo (Brazzaville) e a República do Congo (Léopoldville), atingiram há pouco a independência. Em termos económicos e políticos, o Congo (Brazzaville) goza de certa estabilidade..., mas o Congo (Léopoldville) está a ser devorado pela fome, pela doença e pela guerra civil. Durante os próximos dez anos, estes países não terão grandes possibilidades de apoiar financeiramente os nossos inimigos.

Enquanto estes países se encontrarem assim, tudo em Angola correrá bem..., salvo os pequenos ataques isolados, aqui e além, dos terroristas. Mas, quando beneficiarem de uma situação mais desafogada: apoiarão, sem olharem a meios, a chamada libertação de Angola; e fornecerão das armas mais modernas aos denominados nacionalistas angolanos...

E, ainda por cima, nesta guerra, nem todos os portugueses estão unidos... Em Lisboa e noutros lugares de Portugal continental já começaram a fazer distúrbios...

Se todos os portugueses estivessem unidos, apesar do número dos inimigos (internos e externos) ser superior, com certeza que venceríamos. Mais tarde ou mais cedo, os terroristas acabariam por terminar a luta, cônscios de que nada fariam contra nós..., mas assim...

Escusado será dizer que isto não se deve relatar..., mas esta é a situação... Mal por mal, mais vale estarmos na terra, que nos viu nascer.

 

 

 

A terminologia utilizada na altura era a que fielmente se transcreve. Curiosamente, com o decorrer do tempo, o conceito de terrorista começa a perder o seu significado negro que lhe adveio das chacinas perpetradas, em 15 de Março de 1961 e nos dias e semanas que se seguiram, pela U.P.A.. De tal maneira aquele conceito se esvaziou do terror que lhe estava associado que, por último, era utilizado carinhosamente na comunicação familiar para admoestar, com a necessária brandura, a rebeldia ou o excesso de actividade das crianças mais pequenas.

Quanto à minha posição, em relação ao futuro de Angola, tendo na altura apenas 20 anos, acreditava sinceramente na ideia de uma pátria pluricontinental e multirracial, desde que, sem ditadura, tal fosse a vontade livremente expressa pelas populações interessadas e numa base de absoluta igualdade. Afinal, o grande espaço económico e político, constituído pela União Europeia, que necessariamente se veio a impor e ainda está em fase de aprofundamento e alargamento, não é na prática a realização de um ideal semelhante? Se portugueses, espanhóis, franceses ingleses, alemães... podem simultaneamente ser cidadãos europeus, por que é que portugueses, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, angolanos, moçambicanos, timorenses e brasileiros não podem, se o desejarem, cooperar intensamente entre si e serem ao mesmo tempo cidadãos lusófonos?

 

 

 

 

(1) Em Abril de 1962, são promulgadas novas Leis do Trabalho Rural para as então Províncias Ultramarinas, adoptando, os antigos Serviços de Curadoria, a designação de Instituto do Trabalho.

 

(2) Era a resposta a mais uma sondagem que os meus familiares faziam junto de mim, com vista à sua eventual saída da terra em busca de melhores condições de vida. Afinal não era o que quase toda a gente estava a fazer, no mundo rural português, emigrando em massa para a França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, etc.?

 

Arlindo de Sousa

publicado por Quimbanze às 08:49

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